Vox Dei
A pregação, como uma forma distinta de comunicação da vontade de Deus revelada na sua Palavra, está em declínio. Em muitas igrejas ela tem sido substituída por um número cada vez maior de atividades.
Há 30 anos atrás, o Dr. Martyn Lloyd-Jones foi convidado a proferir uma série de conferências no Westminster Theological Seminary, em Filadélfia. Nessas palestras, publicadas em 1971 com o título Pregação e Pregadores, ele enfatizou que a pregação é a tarefa primordial da igreja e do ministro, e explicou que estava ressaltando isso “por causa da tendência, hoje, de depreciar a pregação em prol de várias outras formas de atividade.”1 A situação não melhorou. John J. Timmerman observou, quase vinte anos depois, que “em muitas igrejas o sermão é uma ilha que diminui cada vez mais em um mar turbulento de atividades.”
Mesmo igrejas de tradição reformada parecem estar sucumbindo paulatina, mas progressivamente, a essa tendência, e o lugar da pregação no culto tem perdido importância. John Frame, teólogo de tradição reformada, publicou há dois anos o livro Culto em Espírito e em Verdade: Um Estudo Estimulante dos Princípios e Práticas do Culto Bíblico. No livro o autor nega, entre outras coisas, que a pregação seja função restrita dos ministros da Palavra, ou mesmo dos presbíteros em geral, considera a dramatização e o diálogo métodos legítimos de ensino no culto público, e não vê razão pela qual um culto público não possa ser inteiramente musical. David Engelsma, outro reformado conhecido, observa, entretanto, que com base na negação de qualquer distinção entre o culto público oficial e o culto familiar, John Frame faz uma interpretação tão ampla do princípio regulador reformado, que este acaba se tornando sem sentido.4Muitas são as razões para o declínio contemporâneo da pregação. O surgimento de novos meios de comunicação e de novas mídias interativas, a aversão do homem pós-moderno pela verdade objetiva ou absoluta, a secularização da sociedade, o afastamento do cristianismo das Escrituras, e a própria corrupção da pregação, em muitos púlpitos degenerada em eloqüência de palavras, demonstração de sabedoria humana, elucubrações metafísicas, meio de entretenimento, ou embromação pastoral dominical, certamente são algumas delas. Uma das principais razões, entretanto, diz respeito à concepção moderna da pregação, muitas vezes encarada como atividade meramente humana e pouco relevante, cuja eficácia depende fundamentalmente das habilidades naturais ou capacidade do pregador.
Todas estas tendências, influências e concepções produziram resultados devastadores sobre a pregação nos meios evangélicos. Ela tornou-se como que um apêndice no culto público, e as conseqüências, sem dúvida, se têm feito sentir na vida da igreja. Na perspectiva reformada, o declínio do lugar da pregação no evangelicalismo moderno é uma constatação seríssima. Se a teologia reformada com relação à pregação reflete o ensino bíblico, então muito do estado presente da igreja cristã, se explica como resultado desse declínio da pregação. Meu propósito com este artigo é apresentar, resumidamente, o ensino reformado concernente à natureza, importância, eficácia e propósito da pregação.
I. A NATUREZA DA PREGAÇÃO
O conceito reformado de palavra de Deus é mais amplo do que aquele geralmente compreendido pela expressão. Ele inclui a palavra escrita: a Bíblia; a palavra encarnada: Cristo; a palavra simbolizada ou representada: os sacramentos do batismo e da ceia; e a palavra proclamada: a pregação. Na teologia reformada, portanto, a pregação da Palavra de Deus é palavra de Deus. Esta concepção de pregação é professada no primeiro capítulo da Segunda Confissão Helvética, de Bullinger, nos seguintes termos:
A Pregação da Palavra de Deus é palavra de Deus. Por isso, quando a Palavra de Deus é presentemente pregada na igreja por pregadores legitimamente chamados, cremos que a própria palavra de Deus é proclamada e recebida pelos féis; e que nenhuma outra palavra de Deus deve ser inventada nem esperada do céu...
Isto não significa identificação absoluta da palavra pregada com a palavra escrita. As Escrituras são definitivas e supremas, inerentemente normativas, enquanto que a autoridade da pregação é sempre delas derivada e a elas subordinada. Não significa também que a pregação seja inspirada ou inerrante. Os pregadores, por mais fiéis que sejam na exposição das Escrituras, não são preservados do erro como o foram os autores bíblicos. Muito menos significa que os ministros da Palavra sejam instrumentos de novas revelações do Espírito. O próprio documento reformado acima citado repudia essa idéia, ao afirmar que “nenhuma outra palavra de Deus deve ser inventada nem esperada do céu.”
A pregação da Palavra de Deus é palavra de Deus, primeiro porque é na condição de porta-voz, de embaixador, de representante comissionado por Deus, que o pregador fala (2 Co 5.20). “A natureza da obra do pregador,” observa Dabney, “é determinada pela palavra empregada para descrevê-la pelo Espírito Santo. O pregador é um arauto.” A pregação é palavra de Deus porque é entregue em nome de Deus, e debaixo da sua autoridade. Em segundo lugar, a pregação é palavra de Deus em virtude do seu conteúdo. Parker observa que a pregação recebe seu status de palavra de Deus das Escrituras. A pregação “é palavra de Deus, porque transmite a mensagem bíblica, que é a mensagem ou Palavra de Deus.” Enquanto a pregação refletir fielmente a Palavra de Deus, ela tem a mesma autoridade, e requer dos ouvintes a mesma obediência.
Robert L. Dabney observa que o uso do termo arauto para descrever o ofício do pregador encerra duas implicações. Primeiro, que não lhe compete inventar sua mensagem, mas transmiti-la e explicá-la. Segundo, que o arauto
...não transmite a mensagem como mero instrumento sonoro, como uma trombeta ou tambor; ele é um meio inteligente de comunicação...; ele tem um cérebro, além de uma língua; e espera-se que ele entregue e explique de tal maneira a mente do seu senhor, que os ouvintes recebam, não apenas os sons mecânicos, mas o verdadeiro significado da mensagem.”
Pregação, definiu Phillips Brooks, é a comunicação da verdade de Deus através da personalidade do pregador. Assim como a palavra inspirada não deixa de ser divina, embora escrita por autores humanos em pleno uso de suas peculiaridades humanas, assim também a palavra pregada não deixa de ser de Deus por ser mediada pela personalidade do pregador.
Na verdade, mais do que mero instrumento de comunicação da vontade de Deus, a pregação, na concepção reformada, é um dos meios pelos quais Cristo se faz presente na igreja. Assim como a fé reformada crê na real presença espiritual de Cristo nos sacramentos, crê também na sua real presença espiritual na pregação, pela qual ele salva os eleitos e edifica e governa a igreja. Essa concepção, em certo sentido sacramental da pregação, considerada como que uma epifania de Cristo, é afirmada freqüentemente por Calvino nas Institutas e em seus comentários. Leith observa que, nas Institutas (4.14.26), Calvino cita Agostinho, o qual referia-se às palavras como sinais, porquanto na sua concepção, “na pregação, o Espírito Santo usa as palavras do pregador como ocasião para a presença de Deus em graça e em misericórdia,” e, “nesse sentido, as palavras do sermão são comparáveis aos elementos dos sacramentos.”
A concepção reformada de pregação como vox Dei é compartilhada por Lutero. Comentando João 4.9-10, o reformador pergunta: “Quem está falando [na pregação]? O pastor? De modo nenhum! Vocês não ouvem o pastor. A voz é dele, é claro, mas as palavras que ele emprega são na realidade faladas pelo meu Deus.” Condenando a tendência católica romana de transformar em sacramento tudo o que os apóstolos fizeram, Lutero afirma que se alguma dessas práticas tivesse que ser sacramentalizada, que a pregação o fosse.
Foi Calvino, entretanto, quem elaborou mais detalhadamente a questão da natureza da pregação como “a voz de Deus.” Em seu comentário de Isaías ele afirma que na pregação “a palavra sai da boca de Deus de tal maneira que ela de igual modo sai da boca de homens; pois Deus não fala abertamente do céu, mas emprega homens como seus instrumentos, a fim de que, pela agência deles, ele possa fazer conhecida a sua vontade.” Comentando Gálatas 4.19, “até ser Cristo formado em vós,” Calvino enfatiza a eficácia do ministério da Palavra, afirmando que porque Deus “...emprega ministros e a pregação como seus instrumentos para este propósito, lhe apraz atribuir a eles a obra que ele mesmo realiza, pelo poder do seu Espírito, em cooperação com os labores do homem.” Para Calvino, a leitura e meditação privadas das Escrituras não substituem o culto público, pois “entre os muitos nobres dons com os quais Deus adornou a raça humana, um dos mais notáveis é que ele condescende consagrar bocas e línguas de homens para o seu serviço, fazendo com que a sua própria voz seja ouvida neles.” Por isso, quem despreza a pregação despreza a Deus, porque ele não fala por novas revelações do céu, mas pela voz de seus ministros, a quem confiou a pregação da sua Palavra. Ao falar Deus aos homens por meio da pregação, Calvino identifica dois benefícios: “...por um lado, ele [Deus], por meio de um teste admirável, prova a nossa obediência, quando ouvimos seus ministros exatamente como ouviríamos a ele mesmo; enquanto que, por outro, ele leva em consideração a nossa fraqueza ao dirigir-se a nós de maneira humana, por meio de intérpretes, a fim de que possa atrair-nos a si mesmo, ao invés de afastar-nos por seu trovão.”
Os puritanos não pensavam de modo diferente. Eles viam o pregador da Palavra como um porta-voz de Deus. Eles afirmavam que “na fiel exposição da Palavra, Deus mesmo está pregando, e que se um homem está fazendo uma verdadeira exposição das Escrituras, Deus está falando, pois é a palavra de Deus, e não a palavra do homem.” “Não pode haver dúvida de que para estes adoradores, a pregação da Palavra tornou-se um sacramento verbal.’’ John Owen, por exemplo, escreveu que “Cristo nos chama a si... nas pregações do evangelho, pelas quais ele é evidentemente crucificado diante de nossos olhos” (Gl 3.1). Mencionando a mesma passagem bíblica, Paul Helm comenta que, na pregação, os Gálatas como que viram a Cristo com seus próprios olhos. Ele também observa que “os protestantes geralmente enfatizam que a graça conferida nos sacramentos não é de natureza diferente e, certamente, não superior àquela conferida na pregação fiel... assim como os sacramentos são emblemas visíveis da graça de Deus, assim também é a pregação fiel.”
II. A RELEVÂNCIA DA PREGAÇÃO
Em virtude dessa elevada concepção da pregação como vox Dei, a fé reformada atribui à proclamação pública da Palavra de Deus a maior importância. Na tradição reformada a pregação é considerada como o principal meio de graça, como a tarefa primordial da igreja e do ministro da Palavra, como o elemento central do culto, como marca genuína da verdadeira igreja e como o meio por excelência pelo qual é exercido o poder das chaves.
A. O Principal Meio de Graça
Na teologia reformada a pregação é um meio de graça. Ela e a ministração dos sacramentos são as ordenanças pelas quais o pacto da graça é administrado na nova dispensação.
De fato, na concepção reformada, a pregação é o mais excelente meio pelo qual a graça de Deus é conferida aos homens, suplantando inclusive os sacramentos. Os sacramentos não são indispensáveis; a pregação é. Os sacramentos não têm sentido sem a pregação da Palavra, sendo-lhe subordinados.Os sacramentos servem apenas para edificar a igreja; a pregação, além disso, é o meio por excelência pelo qual a fé é suscitada; é o poder de Deus para a salvação. Os sacramentos são como que apêndices à pregação do evangelho. É assim que reformadores e puritanos interpretam as palavras de Paulo em 1 Coríntios 1.17: “Porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evangelho.” Para Calvino, os sacramentos não têm sentido sem a pregação do evangelho. Quando a ministração dos sacramentos é dissociada da pregação, eles tendem a ser considerados como práticas mágicas.
A idéia puritana quanto à relevância da pregação não é diferente. Lloyd-Jones observou que “os puritanos asseveravam também que o sermão é mais importante que as ordenanças ou quaisquer cerimônias. Alegavam que ele é um ato de culto semelhante à eucaristia, e mais central no serviço da igreja. As ordenanças, diziam eles, selam a palavra pregada e, portanto, são subordinadas a ela.” Comentando Efésios 4.11, Hodge explica o papel do pregador como canal da operação do Espírito como segue:
Assim como no corpo humano há certos canais por meio dos quais a influência vital flui da cabeça para os membros, os quais são necessários à sua comunicação, assim também há certos meios divinamente designados para a distribuição do Espírito Santo, de Cristo para os diversos membros do seu corpo. Quais canais de influência divina são esses, pelos quais a igreja é sustentada e impulsionada, é claramente indicado no verso 11, no qual o apóstolo diz: “Cristo deu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos.” É, portanto, através do ministério da Palavra que a influência divina flui de Cristo, o cabeça, para todos os membros do seu corpo; de modo que onde o ministério falha, a influência divina falha. Isto não significa que os ministros, na qualidade de homens ou oficiais, sejam de tal modo canais do Espírito para os membros da igreja, que sem a intervenção ministerial deles, ninguém se torna participante do Espírito Santo. Significa, sim, que os ministros, na condição de despenseiros da verdade, são, portanto, os canais da comunicação divina. Pelos dons da revelação e inspiração, Cristo constituiu uns apóstolos e outros profetas para a comunicação e registro da sua verdade; e pela vocação interna do seu Espírito, ele constitui outros evangelistas e outros pastores, com vistas à sua constante proclamação e persuasão. E é somente (no que diz respeito aos adultos) em conexão com a verdade assim revelada e pregada, que o Espírito Santo é comunicado.
Que graças são comunicadas por meio da pregação? A pregação é o meio pelo qual as pessoas adultas e capazes são externamente chamadas para a salvação.40 É a causa instrumental da fé e principal meio pelo qual a fé é aumentada e fortalecida, a igreja é edificada e o Reino de Deus é promovido no mundo. Pela pregação da Palavra a igreja é ensinada, convencida, reprovada, exortada e confortada.
B. A Tarefa Primordial da Igreja e do Pregador
Na concepção reformada, a pregação é a tarefa primordial da igreja e do ministro da Palavra. Em suas mensagens e escritos, os reformadores condenam insistente e duramente o clero romano por negligenciar a pregação. Incapacitados para a tarefa, os sacerdotes católicos delegavam a função a outros, e dedicavam-se a atividades secundárias, ou mesmo à ociosidade e à luxúria. A superficialidade e leviandade com que as pessoas participavam da missa era, para Lutero, culpa dos bispos e sacerdotes, que não pregavam nem ensinavam as pessoas a ouvir a pregação. Ele considera que:
...não há praga mais cruel da ira de Deus do que quando ele envia fome [escassez] de ouvir sua Palavra, como diz Amós [8.11s], como também não existe maior graça do que quando envia sua Palavra, conforme o Salmo 107.20: “Enviou sua Palavra e os sarou, e os livrou de sua perdição.” Também Cristo não foi enviado para outra tarefa do que para [pregar] a Palavra; também o apostolado, o episcopado e toda ordem clerical para outra coisa não foram chamados e instituídos do que para o ministério da Palavra.
Para Lutero, “...quem não prega a Palavra, para o que foi chamado pela igreja, não é sacerdote de maneira alguma... quem não é anjo (mensageiro) do Senhor dos Exércitos ou quem é chamado para outra coisa que não para o angelato (por assim dizer), certamente não é sacerdote... Por isso também são chamados de pastores, porque devem apascentar, isto é, ensinar. O múnus do sacerdote é pregar. O ministério da Palavra faz o sacerdote e o bispo.”
Calvino também condena repetidas vezes os sacerdotes e bispos por não pregarem o evangelho. Comentando Atos 1.21-22, quando Barsabás e Matias são indicados para preencher a vaga de Judas no apostolado, como testemunhas da ressurreição de Cristo, Calvino conclui com isso que o ensino e a pregação são funções essenciais do ministério.
Devemos ser fiéis em cada parte das nossas obras ministeriais, e nos empenhar para magnificar nosso ofício. De maneira particular, devemos atentar para a nossa pregação, a fim de que ela seja não apenas sã, mas instrutiva, temperada, espiritual, muito estimulante e perscrutadora; bem pertinente à época e tempos em que vivemos, labutando diligentemente para isso.
Dentre as passagens bíblicas que fundamentam essa característica da pregação reformada, as seguintes podem ser mencionadas: com relação a Jesus, Lucas 12.14 e João 6.14-15; com relação aos apóstolos, Atos 6.1-7 e 1 Coríntios 1.17; com relação aos evangelistas, precursores do ministério permanente da pregação da Palavra, 1 Timóteo 5.15; e com relação aos ministros permanentes da Palavra, Romanos 10.13-17 e 2 Timóteo 4.1-4.
C. A Centralidade da Pregação no Culto
No culto medieval, a pregação era considerada, no máximo, como elemento preparatório para a ministração e recepção dos sacramentos. Na concepção reformado-puritana, “a leitura das Escrituras, com santo temor, a sã pregação da Palavra e a consciente atenção a ela em obediência a Deus com entendimento, fé e reverência...,” são os principais elementos do culto a Deus na dispensação da graça. A Reforma restaurou a pregação à sua posição bíblica, conferindo a ela a centralidade no culto público.
Na antiga dispensação, o elemento central do culto público era o sacrifício, uma pregação simbólica apontando para o sacrifício de Cristo. Na nova dispensação, havendo Cristo oferecido a si mesmo como o Cordeiro Pascal que tira o pecado do mundo, não há mais lugar para sacrifícios. A pregação da Palavra é a legítima substituta do sacrifício como atividade central do culto na dispensação da graça. O que o sacrifício proclamava de forma simbólica e pictórica na antiga dispensação, deve ser agora anunciado de forma oral, pela leitura e pregação da Palavra.
Com o propósito de restaurar a igreja em Genebra ao modelo bíblico, Calvino e outros redigiram as Ordenanças Eclesiásticas, um manual de governo eclesiástico e de culto. De acordo com asOrdenanças, a pregação da Palavra deveria ser o elemento essencial do culto público e a tarefa essencial e central do ministério pastoral. No seu prefácio aos sermões de Calvino sobre o Salmo 119, Boice observa:
Quando a Reforma Protestante aconteceu no século XVI e as verdades da Bíblia, que por longo tempo haviam sido obscurecidas pelas tradições da igreja medieval, novamente tornaram-se conhecidas, houve uma imediata elevação das Escrituras nos cultos protestantes. João Calvino, em particular, pôs isto em prática de modo pleno, ordenando que os altares (há muito o centro da missa latina) fossem removidos das igrejas e que o púlpito com uma Bíblia aberta sobre ele fosse colocado no centro do prédio.
Lutero também “...considerava a pregação como a parte central do culto público e colocava a pregação da Palavra até mesmo acima da sua leitura.” Timothy George descreve assim a contribuição de Lutero para a pregação:
Lutero recuperou a doutrina paulina da proclamação: a fé vem pelo ouvir, o ouvir pela palavra de Deus... (Rm 10.17). Lutero não inventou a pregação mas a elevou a um novo status dentro do culto cristão... O sermão era a melhor e mais necessária parte da missa. Lutero investiu-o de uma qualidade quase sacramental, tornando-o o núcleo da liturgia... O culto protestante centrava-se ao redor do púlpito e da Bíblia aberta, com o pregador encarando a congregação, e não em volta de um altar com o sacerdote realizando um ritual semi-secreto. O ofício da pregação era tão importante que até mesmo os membros banidos da igreja não deviam ser excluídos de seus benefícios.
D. A Marca Essencial da Verdadeira Igreja
Porquanto na pregação Cristo fala e se faz presente, governando e ensinando a igreja, a fé reformada é unânime em considerar que a pregação da Palavra é uma das marcas da verdadeira igreja. Diversos símbolos de fé reformados, dentre os quais a Confissão Belga (artigo 29), a Confissão Escocesa de 1560 (artigo 18), a Confissão da Igreja Inglesa em Genebra de 1556 (artigos 26-28), a Confissão de Fé Francesa de 1559, e a Segunda Confissão Helvética de 1566 (capítulo 17) professam que a “pregação pura do evangelho,” a “verdadeira pregação da Palavra de Deus,” é uma das marcas pelas quais a verdadeira igreja de Cristo pode ser reconhecida neste mundo. Lutero escreveu que “unicamente Cristo é o cabeça da cristandade. Ele age através do evangelho pregado, do Batismo e da Ceia do Senhor, os quais, portanto, são também os sinais pelos quais a verdadeira igreja se identifica.” Para Calvino, Satanás tenta destruir a igreja fazendo desaparecer a pregação pura. Conseqüentemente,
... os sinais pelos quais a igreja é reconhecida são a pregação da Palavra e a observância dos sacramentos, pois estes, onde quer que existam, produzem fruto e prosperam pela bênção de Deus. Eu não estou dizendo que onde quer que a Palavra seja pregada os frutos imediatamente apareçam; mas que, onde quer que seja recebida e habite por algum tempo, ela sempre manifesta sua eficácia. Mas isto quando a pregação do evangelho é ouvida com reverência, e os sacramentos não são negligenciados...
De fato, dentre as três marcas da verdadeira igreja geralmente reconhecidas (a pregação, a ministração dos sacramentos e o exercício da disciplina), a pregação é considerada a mais importante. Primeiro, porque inclui as outras duas: como vimos, na concepção reformada, os sacramentos não podem ser dissociados da Palavra, nem o exercício da disciplina. Segundo, porque é através da pregação verdadeira da Palavra que os eleitos são congregados e edificados. Berkhof, por exemplo, afirma que, “estritamente falando, pode-se dizer que a pregação verdadeira da Palavra e seu reconhecimento como o modelo da doutrina e da vida é a única marca da igreja. Sem ela não há igreja, e ela determina a reta administração dos sacramentos e o exercício fiel da disciplina eclesiástica.”
Herman Hoeksema, outro teólogo reformado, escreveu:
...podemos dizer que a única marca distintiva importante da verdadeira igreja é a pura pregação da Palavra de Deus. Onde a Palavra de Deus é pregada e ouvida, aí está a igreja de Deus. Onde esta Palavra não é pregada, aí a igreja não está presente. E onde esta Palavra é adulterada, a igreja deve arrepender-se ou morrerá.
E. A Responsabilidade do Pregador e dos Ouvintes para a Eficácia da Pregação
Como vimos, a fé reformada condiciona a eficácia da pregação primordialmente à obra do Espírito no pregador e nos ouvintes. Isso, entretanto, não ocorre em detrimento da responsabilidade humana de um e de outros. A eficácia da pregação depende também da fidelidade do pregador em não adulterar ou mercadejar a Palavra de Deus (2 Co 2.17 e 4.2) e do uso correto que fizer da Palavra, o qual, por sua vez, dependerá da sua fidelidade no preparo. Depende, ainda, da responsabilidade dos ouvintes em receberem com atenção, reverência, fé e obediência a palavra pregada (Rm 1.5; 15.26).
Os ministros da Palavra são descritos nas Escrituras como “presbíteros que se afadigam na Palavra e no ensino” (1 Tm 5.17), são exortados a manejarem bem a Palavra da verdade (2 Tm 2.15) e a não se tornarem negligentes na preparação para a tarefa (2 Tm 4.14). Da perseverança deles nestes deveres dependerá também a eficácia da pregação para a salvação dos ouvintes (v. 16).
Quanto aos ouvintes, são instados nas Escrituras a considerarem atentamente a Palavra e a não serem negligentes, mas operosos praticantes (Tg 1.25); a “acolherem com mansidão a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar as vossas almas” (Tg 1.21b); a tornarem-se “praticantes da Palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1.22).
Reformadores e puritanos enfatizaram bastante a responsabilidade dos ouvintes para a eficácia da pregação. A teologia reformada da palavra pregada resultou em uma teologia reformada da palavra ouvida. Especialmente com relação à edificação dos crentes, esta responsabilidade inclui o devido preparo prévio para ouvir a pregação, a atitude correta ao ouvir a palavra pregada, e o uso apropriado posterior da mensagem ouvida. A preparação prévia requer oração, apetite e um espírito ensinável. Somente uma semana vivida pensando nas coisas do alto, onde Cristo vive, deixa o crente preparado para ouvir a pregação (Cl 3.1-2; 2 Co 4.18). A atitude ao ouvir exige reverência, atenção, humildade e fé (Hb 4.1-2), características daqueles que discernem a real natureza do culto e da pregação. O uso apropriado posterior inclui meditação, oração e prática da mensagem ouvida (Tg 1.21-25).
Lutero escreveu que “incorre em grave pecado quem não ouve [a pregação do] evangelho e despreza semelhante tesouro...” Para Calvino, “a pregação é um ato corporativo da igreja toda.” A congregação participa da pregação tão ativamente quanto participa da ceia.Por isso, ele insiste em que os ouvintes venham preparados para receber a mensagem. Ele enfatizou que a pregação da Palavra precisa ser ouvida “com grande reverência”, “bastante atenção,” e “sobriedade para o nosso proveito.” Acima de tudo, disse ele, “precisamos orar continuamente para que o generoso e gracioso Senhor nos conceda seu Espírito, a fim de que por ele a semente da Palavra de Deus seja vivificada em nossos corações.” Calvino menciona também a necessidade de humildade para receber a palavra pregada, mas observa que é o próprio Espírito Santo quem torna uma pessoa desejosa de ser ensinada pela Palavra. William Perkins, um dos pais do puritanismo inglês, escreveu que
...a responsabilidade daqueles que ouvem a pregação da Palavra de Deus, é submeterem-se a ela... O dever de vocês é ouvir a Palavra de Deus, pacientemente, submeter-se a ela, ser ensinados e instruídos, e mesmo ser perscrutados e repreendidos, e ter os seus pecados descobertos e as corrupções arrancadas.
Conclusão
A genuína pregação do evangelho nunca é vã. Os legítimos pregadores do evangelho são sempre conduzidos por Deus em triunfo, pois por meio deles se manifesta em todo lugar a fragrância do conhecimento de Deus. Eles são, diante de Deus, o bom perfume de Cristo, tanto nos que são salvos, como nos que se perdem. “Para com estes cheiro de morte para morte; para com aqueles aroma de vida para vida” (2 Co 2.14-16). Mesmo quando rejeitada, a eficácia da palavra pregada se manifesta tornando indesculpáveis os réprobos, os quais, afirma Calvino, são cegados e estupeficados ainda mais pela pregação da Palavra. Ou a pregação nos aproxima de Deus, ou nos coloca mais perto do inferno.
Que a vox Dei seja ouvida em nossos púlpitos, para a conversão dos perdidos, para a restauração da imago Dei na alma e na vida dos ouvintes, com vistas à promoção do reino e da glória de Deus no mundo.